Um lugar lindo com rio e mar, mangue e dunas, que até sítio arqueológico tem. Assim eu apresento rapidamente o Cumbe, onde estive por algumas vezes entre dezembro e fevereiro de 2015/16.Chego por lá num momento de festa, a II Festa do Mangue. Festejo onde se percorre o território para entender as práticas tradicionais, e assim afirmar a identidade desta comunidade reconhecida como quilombola. Aliás, Cumbe em alguns países latino americanos significa quilombo e este, por sua vez, sempre esteve associado à luta e resistência.

Aracati é nome de vento, aquele que sobe contra o curso natural das águas do Jaguaribe, soprando forte pelo sertão adentro do Ceará, levando frescor de mar, mexendo com o real e imaginário de quem à margem do rio está. Aracati também é o nome do munícipio de onde parte a Estrada da Canavieira, que nas visitas seguintes me levou ao Cumbe após 10 km de pedaladas em estrada carroçal, por entre criadouros de camarãovigiados dia e noite como ouro de tolo. É a carcinicultura, técnica de criação de camarões em viveiros, que destrói o manguezal com toda sua biodiversidade e funções ecológicas, criando ameaças ambientais, culturais e socioeconômicas à comunidade tradicional. Esta mesma indústria do camarão também ameaça contaminar os lençóis freáticos da região, que de tão abundantes em água doce, pude presenciar um poço artesiano cavado na praia a poucos metros do mar.

É pra chegar nesta praia, que por toda a parte se avista também os monumentais cata-ventos. Bonitos e simbólicos, que pela forma poderiam ser arte, se o conteúdo não favorecesse aos covardes. A empresa de energia eólica, sob o disfarce de Bons Ventos, privatiza as dunas bloqueando caminhos e territórios tradicionais da população local, gerando energia que amplia contas bancárias já estufadas ao longo da história mal contada do Brasil. Não cumpre as promessas de melhorias sociais na região, feitas aos moradores após tantos transtornos no cotidiano destes,nem os contempla com a tal energia gerada, mesmo com torres e fios de alta tensão passando sobre suas moradias.

Eu que acho cata-vento bonito, mas horrível a covardia dos opulentos, me admirei mesmo foi com os artesanais, estes feitos das carnaúbas que estão por toda parte e que também encantam pela forma com que trazem água do rico subsolo para dar de beber as pessoas, animais e plantas. É com um destes dentro do quintal que se água uma grande horta na casa do João, o João do Cumbe, onde ao caminhar pela tão variada plantação de legumes e verduras, chega-se aos fundos do quintal com a duna se apropriando do terreno. Sobre ela se avista outras mais, com a areia sempre correndo baixo de um vento que sopra constantemente, expondo uns e cobrindo outros locais onde se preservaram evidências de atividades do passado histórico. São fragmentos de cerâmicas e pedras utilizadas como ferramentas pelos antepassados que viveram ali, fazendo deste lugar um sítio arqueológico.

Isto que eu conto aqui é uma tomada de conhecimento que se dá principalmente através da vivência na comunidade, já que sentir vai além de saber. Acompanhando a cata do caranguejo ou a pesca de arrasto no mar com Ronaldo, Reginaldo e outros pescadores, subindo e descendo rio com Carlinhos e Cristiano, caminhando pelas dunas com João, pedalando com Tiana e Victor, proseando com Dandina e as Donas Zuíla e Raimunda, uma visita e outra vizinha da Maré, é que se aprende mais sobre o Cumbe. Assim sentimos a intensidade do nosso povo, com suas belezas e a urgência da luta contra os intrusos do mangue e das dunas.

A Maré que cito aqui é das Artes. Casa Maré das Artes, sempre cheia de crianças, é o espaço cultural independente mantido por Titi, Mari e Ton, que somam nesta resistência com os moradores e que no Cumbe me permitiu uma breve residência. A ponte que me proporcionou conhecer outros visitantes, conviver com os nativos e a partir disso elaborar uma pintura realizada no muro em demolição onde se prepara terreno para erguer o Museu Arqueológico. Nesta intervenção efêmera está o caranguejo, símbolo do mangue, com o ideograma africano Akoben pairando sobre sua cabeça (Akoben: chifre da guerra, simboliza a vigilância) que alguns moradores locais nomearam a pintura como “o caranguejo guerreiro pronto pra guerra”.

Que Palmares e Ambrósio, como símbolos quilombolas históricos,também pairem sobre nossas cabeças fortalecendo a resistência atual.

Emol

Abril/2016

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