I INTERCÂMBIO DOS POVOS DO MAR DO CEARÁ SOBRE TRANSIÇÃO ENERGÉTICA JUSTA E POPULAR E IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA EXPANSÃO DAS EÓLICAS

 I INTERCÂMBIO DOS POVOS DO MAR DO CEARÁ SOBRE TRANSIÇÃO ENERGÉTICA JUSTA E POPULAR E IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA EXPANSÃO DAS EÓLICAS

carta povos do mar.docx - Documentos Google

Comunidade de Caetanos de Cima, Amontada – Ceará


                                                                  27 e 28 de Junho de 2022


Carta dirigida às instituições públicas e a sociedade acerca do processo de planificação e licenciamento de parque eólicos marinhos no Ceará


  1. Considerando que o Brasil é signatário da Agenda 2030 e Convenção de Ramsar, cujo objetivo é de promover a conservação e o uso racional de áreas úmidas no mundo, cuja definição de zona úmida abrange os ecossistemas de zonas úmidas marinhas, costeiras e interiores e o objetivo 14 sobre "Vida abaixo da água” é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pelas Nações Unidas em 2015 que pretende conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.[


  1. Considerando que na zona costeira cearense atua por séculos a atividade da pesca e que essa é estruturante dos modos de vida de comunidades litorâneas e costeiras; 


  1. Considerando que os recursos pesqueiros são uma fonte vital de alimentos e renda para milhares de pessoas na zona costeira do Ceará e que essa atividade se relaciona com o turismo fortemente baseado em atrativos naturais, gastronomia baseada no pescado local e ainda com a prática crescente dos esportes náuticos;

4. Considerando que mais de trezentas comunidades costeiras no Ceará, e dentre elas mais de uma centena de comunidades litorâneas no Ceará, vivem da relação direta e indireta com a pesca e de que a existência de um número apreciável de pessoas,  incluindo comunidades tradicionais - pesqueiras, quilombolas e indígenas (Tremembé, Tapeba, Anacé, Jenipapo Kanindé, Pitaguary) -, depende da produtividade e da qualidade ambiental do mar e dos ecossistemas associados a zona costeira do Ceará;

  1. Considerando que as zonas úmidas intertidais (entre marés) e outras zonas úmidas costeiras e habitats ecologicamente relacionados são de grande importância socioeconómica e cultural, uma vez que fornecem uma série de importantes serviços ecossistêmicos que beneficiam não só às populações locais, mas também à sociedade de forma mais ampla, mitigando os efeitos das alterações climáticas através do sequestro de carbono, atenuação da erosão costeira excessiva, protegendo o litoral e também ajudando a reduzir o risco de tempestades e aumento do nível do mar;


  1. Considerando a conectividade ecológica das zonas costeiras em várias escalas, especialmente pelo seu apoio às espécies migratórias e pelo seu papel como zonas de desova de espécies relevantes para a pesca costeira; e reconhecendo o papel das redes ecológicas na conservação das espécies migratórias;  


  1. Ressaltando que as áreas marinhas e costeiras de alimentação e crescimento que são utilizadas pelas tartarugas marinhas durante seu ciclo de vida, como estuários, bancos de algas marinhas, recifes de corais e manguezais, entre outros, estão frequentemente sujeitas a ameaças físicas e químicas por atividades humanas, tais como como construções e infraestruturas urbanas, industriais, portuárias e turísticas, para além da descarga de águas residuais, efluentes agrícolas e eliminação de efluentes domésticos e industriais;


  1. Considerando que o uso sustentável dos bens ambientais costeiros tem sido severamente afetados por distúrbios causados pelas atividades econômicas (turismo, carcinicultura, eólicas, pesca predatória, atividade petrolífera, siderúrgica…), incluindo impactos cumulativos causados por projetos de desenvolvimento em grande escala; pelas alterações graduais do meio ambiente como mudanças climáticas e aumento do nível do mar; por fenômenos naturais episódicos, como tempestades e inundações, potencializados/alterados pelas mudanças climáticas; e por desastres/crimes ambientais como grandes derramamentos de petróleo;


  1. Considerando um crescimento alarmante na última década na frequência, duração e extensão da degradação e perda de habitats costeiros no Brasil e no Ceará, o que levou a declínios na quantidade e qualidade dos habitats de aves e outros componentes da biodiversidade biológica, além da deterioração da prestação de serviços ecossistêmicos com consequentes impactos sobre as populações costeiras;


  1. Considerando que as áreas pesqueiras reduzem seus rendimentos da pesca em função dos efeitos sinérgicos da pesca predatória, e das consequências da degradação de ecossistemas costeiros (manguezais, recifes costeiros e estuários), que significa degradação de habitats, perda de locais adequados para desova e criação de recursos pesqueiros, além da degradação de áreas de alimentação e refúgio de algumas espécies;

  2. Considerando a inação de uma política pública relativa à pesca que se faz refletir na ausência de uma estatística pesqueira, ordenamento pesqueiro, fiscalização de pesca predatória e na ausência de informações sobre produção, pescadores, produtividade pesqueira;

  3. Considerando a ausência de uma produção científica adequada acerca dos recursos pesqueiros e da atividade pesqueira bem como da biodiversidade marinha e costeira;

  4. Considerando que a implantação de parques eólicos em águas da plataforma continental cearense ameaça áreas fundamentais à biodiversidade marinha e à reprodução, crescimento e alimentação de espécies fundamentais à atividade pesqueira;

  5. Considerando que os parques eólicos marítimos planificados cobrem áreas gigantescas e que alguns estão previstos, na perspectiva de redução dos custos de implantação destes, para uma distância  muito pequena (4km em alguns casos) quando comparada ao padrão internacional (média mínima de 22 km) o que impacta profundamente as paisagens (efeito paliteiro) e o turismo de atrativo paisagístico.


  1. Considerando que os aerogeradores instalados na plataforma continental representam uma restrição à navegação e à atuação da pesca, impactando as atividades econômicas relacionadas, bem como os modos de vida na zona costeira;

  2. Considerando que a planificação dos parques não faz salvaguarda (exclusão)  de nenhuma área de pesca, de nenhuma área vital a reprodução, crescimento e alimentação de espécies marinhas alvo das capturas.

  3. Considerando que tanto não há planificação e exclusão existente com relação às áreas fundamentais para a manutenção da biodiversidade marinha e costeira, como não há atualmente nenhuma área de exclusão em função de rotas de aves migratórias, rotas de sirênios (peixes-boi), tartarugas marinhas e outras espécies, ainda que muitas dessas se encontrem ameaçadas de extinção.

  4. Considerando que o destino do hidrogênio verde projetado para ser produzido com a energia gerada pelas eólicas marinhas seria destinado à Europa - Já são 18 (dezoito memorandos) efetivados pelo governo do estado e empresas multinacionais e sua absoluta maioria é destinada à comercialização do hidrogênio verde como combustível para o continente europeu sem contribuir para a descarbonização da economia cearense e brasileira;


  1. Considerando que a destruição dos ecossistemas e da biodiversidade marinho costeira é ao mesmo tempo a destruição dos modos de vidas e da diversidade sociocultural presente nos territórios demandados para exploração econômica. E que tal destruição se reflete no empobrecimento comunitário, dependência socioassistencial e monetária, e aumento de vulnerabilidades como violência, criminalidade, uso abusivo de drogas degradação das condições sociais, prejudicando gravemente o cotidiano e o destino dos povos e comunidades da zona costeira;


  1. Considerando ainda que a destruição dos ambiente e da diversidade sociocultural são cometidas mediante práticas de racismo institucional e ambiental, injustiças e desigualdades de gênero, e de diferentes violações de direitos das mulheres, crianças e adolescentes, população idosa, LGBTs, pessoas com deficiência e outros grupos populacionais historicamente negados na  democracia e cidadania brasileiras; 



Nos posicionamos contra a instalação de parques eólicos marinhos (offshore) em nossa frente de mar correspondente à plataforma continental do estado do Ceará (em toda sua extensão). 

Somos a favor de uma transição energética justa, e acreditamos que ela deve iniciar pela profunda transformação de nossa matriz energética com a desativação das termelétricas em utilização e com a aplicação do hidrogênio verde para a substituição de carvão mineral utilizado atualmente pela siderúrgica do Pecém para produção de aço a partir de renováveis. O funcionamento das termelétricas e essa produção na atualidade polui e contamina diversas comunidades e ambientes, comprometendo a saúde e a qualidade ambiental, além de colaborar em sua cadeia de produção com a emissão significativa de gases de efeito estufa, agravando sobremaneira a emergência climática que vivenciamos, além de ser uma voraz consumidora de água no contexto de um estado quase que com a totalidade de seu território incluída no semiárido. 

Uma transição energética justa e popular requer a produção de empregos qualificados, a transformação da nossa matriz energética, a produção da justiça social e ambiental com a conservação dos modos de vida e dos ambientes. 

Exige ainda que a energia produzida possa servir para atendimento às demandas das populações locais de maneira descentralizada e de forma a democratizar seu acesso e baratear seus custos.

Para além da ausência de um planejamento espacial marinho, há a necessidade de avaliação ambiental estratégica. É inimaginável que estes parques prevejam sua implantação cada um de maneira isolada, sem considerar os impactos sinérgicos e regionais

Sem isso, o que vemos é a reedição de uma visão colonialista que eterniza o Ceará como outras áreas do Sul global na condição de ofertadores de nossos bens naturais, do sacrifício de nossos povos, sua qualidade de vida, em especial da deterioração da vida das mulheres numa perspectiva onde racismo ambiental, patriarcalismo e colonialismo se fundem e ameaçam seus territórios  e seus modos de vida, visão com a qual não compactuamos e cuja materialização não aceitaremos.


Assinam essa carta, os/as presentes ao I Intercâmbio dos Povos do Mar:

Ana Vylena de Sousa -  E.E.C.Maria Elisbânia dos Santos

Associação dos Moradores do Jardim (Fortim)

Instituto Terramar

Camila Dutra dos Santos, professora dos cursos de Geografia da UECE; coordenadora do Grupo de Pesquisa e Articulação Campo, Terra e Território (NATERRA-UECE).

João Alfredo Telles Melo, advogado, professor, militante ecossocialista e de Direitos Humanos.

Maria José do Nascimento Holanda(zezinha)- Assentamento Maceió - Itapipoca

Soraya Vanini Tupinambá - Coord. Técnica do projeto De mãos dadas construímos correnteza (Instituto Terramar)



Assinam em apoio a essa carta as seguintes entidades/pessoas: 

Cáritas Brasileira Regional Ceará

Iara Vanessa Fraga de Santana, assistente social, doutoranda UFPE, professora IFce Campus Iguatu.

Liliane de Carvalho Silva - Católicas Pelo Direito de Decidir

Liana Rodrigues Queiroz, Bióloga

Marília Lopes Brandão. Bióloga e professora aposentada da Universidade Federal do Ceará


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