Territórios em disputa: o avanço do racismo ambiental no Ceará

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Territórios em disputa: o avanço do racismo ambiental no Ceará

Territórios em disputa: o avanço do racismo ambiental no Ceará

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Texto: Amanda Sobreira
Fotos e ilustração: Amanda Sobreira e Diogo Braga

Fortaleza, Aracati e Barra do Mundaú. À primeira vista, o que essas regiões têm em comum são as belas paisagens litorâneas cearenses que atraem turistas o ano inteiro. Mas, para além da orla, essas localidades também compartilham o outro lado da história: comunidades tradicionais e periféricas que enfrentam a desigualdade ambiental de forma crônica e racializada.

É nesse contexto que o racismo ambiental se manifesta, quando populações negras, indígenas, quilombolas e pobres são sistematicamente expostas aos maiores riscos ambientais, às piores condições de moradia e aos menores investimentos públicos. Essas violações acontecem em um Estado onde 175 mil pessoas moram em áreas de risco geológico alto ou muito alto, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil (SGB), e 35,1% dos domicílios convivem com insegurança alimentar, de acordo com o último Censo do PNAD/IBGE.

Para enfrentar essa realidade, a Defensoria Pública do Estado do Ceará tem atuado por meio do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), destinado exclusivamente à defesa de pessoas e territórios vulnerabilizados, atuando na mediação de conflitos fundiários, regularização de territórios tradicionais e, quando necessário, ajuizando ações coletivas.

Só entre janeiro e setembro de 2024, o Nuham registrou 1.345 atendimentos — um aumento de 159% em relação ao mesmo período do ano anterior. A maior parte das demandas (90%) está na capital, mas o núcleo também acompanha casos em Iguatu, Crateús, Caucaia, Aracati, São Gonçalo do Amarante, Pacatuba e Umirim. Por meio do projeto “Na Porta da Comunidade”, defensores e assistentes sociais visitaram 60 ocupações, cadastraram 2.260 famílias (6.733 pessoas) e mapearam as violações para subsidiar políticas públicas.

Além das ações ordinárias da Defensoria, desde o ano passado a instituição se debruça em desenvolver projetos especiais com o objetivo de ampliar o acesso a direitos às comunidades tradicionais. O Projeto Amar Defensoria – Um Mar de Direitos, por exemplo, foi criado em 2024 para atender as comunidades localizadas no litoral cearense. No ano passado, sete municípios receberam as equipes do projeto, totalizando mais de 340 pessoas atendidas pelos serviços da Defensoria, que também realiza rodas de conversa com os moradores para entender melhor a demanda dos territórios. O sucesso foi tanto, que ele vai continuar como política da Defensoria.

“São populações historicamente esquecidas e que precisam ainda mais de reconhecimento e de efetivação de seus direitos, pois estão ainda mais vulnerabilizadas em decorrência de conflitos socioambientais. O Amar estava previsto para ser executado em 2024, mas a procura foi tamanha que ele continua. Tanto que no final de maio (29 e 30), faremos a décima edição, desta vez no município de São Gonçalo do Amarante, no Pecém. Apareceram tantas situações de conflitos que vimos a necessidade de estruturar ainda mais a nossa atuação envolvendo as temáticas socioambientais, daí surgiu a proposta do Defensoria Verde”, explica a defensora Camila Vieira, assessora de projetos da Defensoria.

Camila se refere ao projeto deste ano, lançado agora em maio pela defensora geral Sâmia Farias, que integra diversas iniciativas como a construção de novas sedes com eficiência energética e responsabilidade ambiental, a criação de um Grupo de Trabalho dedicado ao estudo dos conflitos socioambientais e a ampliação dos atendimentos às comunidades vulneráveis.

Roda de conversa realizada no Quilombo do Cumbe pelo projeto Amar Defensoria

“Nosso compromisso é, ao longo do ano, promover a formação do nosso corpo técnico, por meio de seminários e profissionais especializados. Assim, faremos um Grupo de Trabalho de defensores dedicados às questões ambientais, garantindo que as comunidades sejam ouvidas e pautem os seus direitos. E realizaremos também diversas campanhas e rodas de conversa para atender os moradores de todo o estado”, garante Sâmia Farias. 

 

A luta do Cumbe e da Barra do Mundaú

A discussão sobre clima e sustentabilidade falha em compreender a realidade do problema quando desconsidera a questão racial. Que o diga a comunidade do Quilombo do Cumbe, localizada em Aracati, litoral leste do estado. A chegada da Cagece na década de 70, da carcinicultura e das usinas eólicas tem alterado drasticamente os modos de vida no Cumbe, sem a realização de estudos prévios obrigatórios, como o Componente Quilombola, nem medidas de reparação ou mitigação dos danos causados.

Famílias permanecem sem acesso à água, com cobranças abusivas da Cagece. O mangue, espaço central para a pesca artesanal e a reprodução social da comunidade, tem sido constantemente desmatado e contaminado. “Quando se contamina o mangue, se impede o trabalho das marisqueiras, se ataca diretamente nossa cultura e nossa economia. São impactos profundos, que atravessam a vida inteira da comunidade”, afirma João do Cumbe, que entre outros títulos é especialista em História e Cultura Africana, Mestre em Educação Brasileira, doutor em História e uma das principais lideranças do Quilombo.

Segundo João, os empreendimentos chegam com o discurso do desenvolvimento, mas o que se instala é o conflito. “Eles nos dividem, nos criminalizam, e colocam nossa existência como obstáculo. Enquanto estiver dando lucro, eles estão aqui. A partir do momento que não tiver mais, eles vão embora e nós não temos para onde ir”, alerta. Diante disso, a comunidade tem investido em estratégias de permanência, como o turismo comunitário e ações educativas, reafirmando a importância de um território livre para a continuidade das práticas ancestrais.

Já no território indígena Tremembé da Barra do Mundaú, localizado no município de Itapipoca, as violações se repetem. A terra, demarcada e homologada, enfrenta invasões constantes, queimadas promovidas por não indígenas e a ameaça da instalação de parques eólicos. Adriana Tremembé, uma das líderes da comunidade, denuncia obras autorizadas sem consulta prévia e com fortes impactos ambientais. “Nosso rio está sendo assoreado pela implantação dessas eólicas. É uma luta e uma resistência diária para impedir que esses projetos avancem ainda mais dentro do nosso território”, relata.

A luta do Cumbe e da Barra do Mundaú é também uma luta pela vida, não só das comunidades que ali vivem, mas de toda a sociedade que depende da preservação de biomas. Por isso que o enfrentamento ao racismo ambiental é um dos pilares da Defensoria Pública do Ceará.

O defensor público Francisco Pankará, primeiro indígena da instituição, destaca que os povos originários estão entre os mais afetados pelas consequências da degradação ambiental, não apenas por sua vulnerabilidade socioeconômica, mas pela profunda relação espiritual e ancestral que mantêm com os territórios. “Eles ocupam grande parte das florestas e áreas que sofrem com as mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, são os principais guardiões desses territórios. Sem os povos originários, não há como restaurar o meio ambiente”, afirma. 

Pankará ressalta que há uma dupla afetação: “Eles sofrem com a perda do espaço físico, da moradia, e também com o impacto espiritual, porque a terra é base para a sua existência, sua fé e cultura.” Para ele, a Defensoria Pública tem um papel essencial ao não se limitar ao sistema judicial, mas atuar com projetos e ações extrajudiciais que buscam uma ordem jurídica verdadeiramente justa. 

“Para mim, indígena, que vejo meu povo sofrendo diretamente por essas questões climáticas, fazer parte de uma instituição que tem como compromisso constitucional levar uma ordem jurídica justa, é gratificante e me faz querer ainda mais ser defensor, me faz entender que estou no lugar certo, para fazer com que essas ações da Defensoria sejam ainda mais fortes e eficientes, sobretudo para com os povos originários. Isso me faz querer ainda mais ser defensor e esse é um pleito na minha atuação defensorial”, conclui.

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