DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA - 20 de novembro

Pescadora e artesã representa a força da mulher negra na luta por direitos, em Aracati


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Foto: Helene Santos
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Cleomar Ribeiro da Rocha, 44 anos, presidente do Quilombo do Cumbe, extrai o sustento da terra e do mangue. Sinônimo de resistência, manifesta na cor da pele e no semblante o orgulho pela conquista feminina na política
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ansiedade não deixou Cleomar Ribeiro da Rocha dormir na noite anterior à nossa chegada. Quando levantou cedinho e se deu conta de que as galinhas haviam comido toda a alface do quintal, engoliu o choro. Esse era um dos primeiros lugares que ela queria nos mostrar, antes do mangue, um ponto de encontro diário com sua ancestralidade.
“Eu lembro das famílias, da minha mãe, da minha vó, o cuidado que elas tinham com os quintais, o aconchego. Então, isso traz na minha memória as práticas delas, da minha comunidade em si”, contextualiza, enquanto nos serve água de coco fresquinha.
Seu feijão não vem das prateleiras, tampouco os legumes e as frutas. E essa relação com a terra se expandiu ainda mais desde que despertou para sua identidade quilombola. Lembra que, ainda na infância, visitava a maior duna do Cumbe, em Aracati, e ouvia dos mais velhos que ali havia sido refúgio dos negros e que eles faziam vigília naquele morro. “Lá, avistavam o mar, todo o rio, todo o território. E eu cresci com aquilo”, pontua hoje, aos 44 anos.
Cleomar nasceu, casou, foi mãe e avó nesse mesmo lugar. Ainda pequena, acompanhava o pai, João Ribeiro da Rocha, 72 anos, nas atividades de um dos nove engenhos que funcionavam na região. “Meu pai perdeu o pai dele muito cedo, era criança de colo, passou muita necessidade. Foi criado nas cozinhas dessas famílias, que tinham as posses das terras e, às vezes, trocava trabalho pelo alimento, tomando de conta das casas nos sítios o dia inteiro”, recorda a filha.
Os engenhos, citados por seu João, são evidências históricas, encontradas também nos primeiros registros documentais do quilombo. Nos manuscritos do botânico Freire Alemão, de 1859, publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1961, pág. 273), o chefe da Expedição Científica de Exploração da Província do Ceará, em visita ao Cumbe, onde ficou hospedado, já menciona a presença de “mulatinhos” realizando o trabalho com a cana. Freire Alemão escreve ainda sobre uma duna/morro, de onde se ouvem “batidas de tambores”, uma possível referência à prática do Candomblé.
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Cleomar da Rocha é quilombola, pescadora e artesãFoto: Helene Santos
Todos esses indícios auxiliaram a comunidade no processo de certificação pela Fundação Cultural Palmares, consolidado em 2014. “E é essa a busca intensa que eu tenho, de saber cada vez mais sobre essa identidade. Hoje ela me pertence tanto. A gente se orgulha de vir de pessoas que lutaram, que resistiram de formas tão cruéis de opressão e que elas viveram. A gente carrega no sangue esse povo que tanto lutou, e acho que é por isso que nós temos essa vontade de lutar, de buscar nossos direitos”, acredita Cleomar, presidente da Associação Quilombola do Cumbe, em seu terceiro mandato.
"A gente carrega no sangue esse povo que tanto lutou, e acho que é por isso que nós temos essa vontade de lutar, de buscar nossos direitos”, diz Cleomar.

Atualidade

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Com a abolição dos escravos, os desafios hoje são outros. Cercados por aerogeradores desde 2008, e por fazendas de criação de camarão em cativeiro desde os anos 1990, os quilombolas agora precisam pedir licença para acessar um território que lhes serve de casa e sustento há mais de 300 anos. “Perdemos o nosso direito de ir e vir, a nossa identidade, os nossos espaços, as nossas práticas”, relembra Cleomar. 
“No fim do trabalho de demarcação do nosso território, feito pelo Incra no ano passado, houve muito conflito interno, porque pessoas daqui, que trabalham para essas empresas, não aceitavam, e a gente não queria brigar com elas”, complementa. O consenso a que as lideranças do Cumbe chegaram foi o de não incluir o povoado na demarcação do Incra, visto que nem todos os moradores se autorreconheceram como quilombolas.
A gente resistiu muito, mas negociamos, e agora estamos aí esperando para ver como vai ser o procedimento. Mas desistir nunca da nossa luta, da nossa existência, da nossa afirmação como negra, quilombola, pescadora. Isso é muito forte em nós, nós podemos gritar, porque é nossa vida”, reforça.
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Quilombo do Cumbe, em Aracati
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Estar na presidência da associação não é tarefa fácil, tampouco segura. Quem lhe antecedeu, João do Cumbe, primeiro a alertar a comunidade para essa herança histórica, conta já ter sofrido até ameaças de morte. Mas esses percalços não intimidam Cleomar, que considera o atual posto uma conquista política feminina.

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