Eólicas: Moradores fazem relatos de destruição provocada pelas geradoras

Sabiaguaba, amontada - Ce. Foto: Camila Garcia
Sabiaguaba, amontada - Ce. Foto: Camila Garcia
MACAU E GUAMARÉ (RN) - Sob o sol forte do junho nordestino, um jegue mordisca ervas junto a um areal cercado de carnaúbas, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Ponta do Tubarão, no Rio Grande do Norte. Não parece, mas ali, no espaço cercado pelas árvores típicas da região, indicadoras de que há água sob a terra, até poucos meses era a Lagoa do Carnaubal, um afloramento à superfície do lençol freático, que cresce quando o inverno - os seis meses de chuvas da região-, é bom, o que não acontece há algum tempo por lá.
Um buraco de poucos metros, com uma poça de água suja, ao lado de um monte de areia escurecida, é o que resta do bebedouro de animais domésticos, criados soltos, principalmente cabras, e também de bichos selvagens, como raposas e pequenos mamíferos.
Segundo o conselheiro da RDS Luiz Ribeiro, o Itá, o reservatório natural resistiu à seca, mas não às construtoras de eólicas, que o atacaram até que sumisse. "Aqui era uma lagoa. Os animais vinham beber. Para fazer a estrada, tiraram muita água, com carros-pipa. O resultado é que a lagoa secou.
Praticamente acabou", diz. "Diariamente, tiravam mais de 20 carros-pipa daqui. Eram três. Cada um fazia oito viagens diárias. Começaram a tirar água para as obras de Miassaba II e Alegria II, para compactar a estrada e também para não fazer muita poeira." A queixa de Itá não é isolada. Em outros pontos do Nordeste, há denúncias de aterramento de lagoas e uso predatório da água- em uma região em que é escassa e em meio ao que já é considerada a maior seca dos últimos 50 anos - por parte das construtoras que montam as eólicas.
Em Caetanos de Cima, no município de Amontada, no litoral oeste do Ceará, o pescador Valyres Sousa conta que na construção de duas usinas, ainda em curso, as empreiteiras retiraram água da Lagoa da Sabiaguaba para empregar na obra. Em meio ao inverno ruim, a situação se agravou quando pequenos agricultores que plantavam nas vazantes começaram a ter problemas em suas plantações e poços secaram, relata.
"Não secou porque fomos ao Ministério Público, fizemos denúncia. Estava secando com muita rapidez", conta Souza, que preside a Associação dos Pequenos Agricultores e Pescadores Assentados no Imóvel Sabiaguaba.
Em Flecheiras, no município cearense de Trairi, a moradora Glaucia Sena relata estrago semelhante. Ali, lagoas também foram secas pelas obras, ainda em andamento, de construção de uma eólica, diz ela. O temor de destruição de reservatórios de água doce pelas obras para construção das eólicas é anterior a seu início.
No relatório "Considerações sobre os projetos de parques eólicos para a área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Ponta do Tubarão (RDSPT) em processo de licenciamento ambiental", do Conselho Gestor da RDS potiguar, de 29 de setembro de 2009, apresenta-se uma lista de pontos que deveriam ser considerados para concessão de licença prévia. Entre elas, estavam os impactos "ambiental no que diz respeito ao movimento de terra e aterramento das lagoas e das dunas" e "sobre o lençol freático e sobre as lagoas ".
Curiosamente, o documento já previa outros problemas que também se confirmaram recentemente, ali e em outras áreas de eólicas, como o impacto visual, perda de acesso ao direito de ir e vir, ameaça a sítios arqueológicos, desmatamento e prejuízos a áreas praias e restingas.
Outra pesquisa prévia à instalação de eólicas, "Estudos arqueológicos na área de intervenção das usinas de energia eólica UEE Bons Ventos 50 MW, UEE Canoa Quebrada 57MW e UEE Enacel 31,5 MW, município de Aracati - Ceará" apontou 53 sítios na região. O local começou a ser ocupado com a chegada dos primeiros pescadores-marisqueiros 5000 a 6000 anos atrás, seguidos por ceramistas tupis e tapuias.
Havia ainda vestígios mais recentes, como restos de objetos domésticos, alguns de origem inglesa, dos séculos XVIII e XIX. O trabalho, dos arqueólogos Verônica Pontes Viana e Valdeci dos Santos Júnior, recomendou "a não execução de empreendimentos de qualquer natureza nesse trecho", que chama de "parcela formadora de grande área arqueológica". A
Bons Ventos, porém, contratou outros arqueólogos, que retiraram mais de 40 mil peças, encaminhadas ao Museu Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, e pôs de pé as usinas.
Cinco anos depois, no Cumbe, o pescador Ronaldo Gonzaga descreve dificuldades para pescar na praia, de livre acesso antes da usina colocar um portão. É possível chegar ao mar indo pelas dunas (não há uma cerca que cubra toda a área),mas na volta, de carro, é preciso usar a estrada. Nessas ocasiões, ocorreram episódios tensos entre pescadores e seguranças. "Uma vez, ameaçamos quebrar o cadeado", conta. Na semana passada, um acordo permitiu o acesso.
Barulho
A guia ecológica Vilma Célia Pereira da Silva, da Vila do Estêvão, em Canoa Quebrada,Aracati (CE), vê outros problemas trazidos pela "energia limpa". "Além de (a construção das eólicas) ter desmatado as dunas, houve um desembelezamento (sic). Os aerogeradores impactam a paisagem local", afirma. Ela destaca que o Estêvão, que preserva as características de vila de pescadores, é uma Área de Relevante Interesse, dentro da Área de Preservação Ambiental onde fica Canoa. As restrições ambientais e de ocupação não impediram, porém, a instalação das torres, algumas muito perto das residências, a ponto de incomodar os seus moradores pela poluição sonora.
"Minha casa é próxima da duna. À noite, o barulho é muito intenso. Durante o dia, acabo não identificando tanto. Quem gosta de caminhar pelas dunas de manhã cedo ou à noite vê que incomoda. Acho que a vila inteira está sentindo que há um barulho diferente daquele que não existia anterior a 2008", diz.
Outra moradora do Estêvão, Dijacila Pereira da Silva, a Lili, coordenadora da ONG Recicriança, afirma que o ruído dos aerogeradores "não chega a incomodar muito". "Parece assim um avião que está chegando e nunca chega", descreve ela, que explica que a maior ou menor intensidade do ruído dependo do lado de onde vem o vento. Lili também afirma não se sentir incomodada pelo visual das torres sobre a paisagem local. "Sinceramente, não acho feio não", diz. O que mais a impressionou foi o desmatamento das dunas onde o parque foi fincado.
Catingueiras, paus-ferro, paus d'arco, muriçus, cajueiros foram derrubados para dar lugar à estrada de acesso às torres. "Para instalar, fizeram um grande desmatamento", afirma.
Dona de casa e moradora da comunidade Mangue Seco II, na RDS Ponta do Tubarão, Keliane da Silva, 21 anos, reclama que os animais domésticos, que eram criados soltos, agora, por causa das eólicas, têm restrições de circulação. Os pequenos proprietários da região arrendaram suas terras para as usinas instalarem os aerogeradores. Segundo ela, seu pai, o agricultor Albino Alves, também arrendou sua terra - embora ainda não haja torres nela -, mas em negócio que vê como pouco vantajoso: recebe por mês apenas R$ 1000, que tem de dividir com dez irmãos. "Muita gente aqui achou bom. Tem gente que recebe até 20 mil. A gente estava largada", afirma.
A comerciante Maria do Socorro Miranda de Queirós, de 63 anos, da Comunidade Mangue Seco I, diz que percebeu, de dois anos para cá -desde que os terrenos foram arrendados - um aumento de movimento no Mercadinho Betel, um acanhado comércio de miudezas que mantém perto da entrada do povoado. "As crianças da escola (Municipal João Batista) agora veem comprar lanches", diz. " Não tinha isso antes. Hoje, os filhos têm aquela mixaria. Se não gostam da merenda, vêm comprar um refrigerante, um biscoito..." Para ela, a chegada das eólicas foi algo bom. "O pessoal que tinha terras não produzia nada. Vivia de quê? Um salário mínimo, que é uma aposentadoria. Depois que a usina chegou, alugaram."
Publicado por: camila em   Notícias.  marcador Tags  impactos ambientais,  justiça ambiental,  energia eólica,  racismo ambiental

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