A minha casa de taipa

Ana Miranda
A minha casa de taipa

24 Jul 2009 - 02h04min
Uma das inesquecíveis visitas que fiz, quando vinha a Fortaleza, foi ao Cumbe, há uns cinco anos. Fica ali, nas redondezas de Aracati. Lugar de rendeiras dos labirintos e meninos fabulosos autores e atores de teatro de mamulengo, os Calungas, lugar em cujas dunas, nas noites sem lua, dom Sebastião emerge das areias com suas bailarinas, cozinheiros, músicos, soldados, os tambores rufam e a terra se move, os moradores ouvem os cantos. Não deixa de ser o reino do Preste João, tem o rio seco, tem os desertos de aniagem, um Sétimo Império. Cumbe seria quilombo? Ali perto fora morto Jacó Rabbi? Tantas guerras antigas entre carnaubais, paus-de-coité, bosques de cajueiros, árvores rendadas de luz...

Chegava-se ao Cumbe por uma estrada de piçarra, ladeada por casas singelas, austeras, umas feitas de palha, outras de barro em taipa, cobertas por folhas de carnaúba e quase todas com varanda e rede. As casas ficavam em terrenos amplos cercados por varas de marmelo, ou pau sabiá, fincadas no chão brejado, entre um e outro braço do mar que azulavam a alvura, cercas mortas onde as pessoas dependuravam cabaças, favas, o que fosse secar ao sol. Admirei a beleza e sabedoria daquela paisagem campestre.

A taipa é um material apaixonante. Nossas sólidas casas e igrejas coloniais foram feitas em taipa de pilão. Ainda hoje na Alemanha há casas em taipa construídas no século 13. A própria muralha da China, tão resistente, usa a taipa. A taipa tem mais de nove mil anos, serviu para construções no antigo Egito e na Mesopotâmia. Há taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobra de madeiras e sucata... Ela aproveita a maleabilidade infinita do barro, permite novas estruturas e dimensionamentos do espaço, oferece imensas possibilidades de melhoria da técnica tradicional. Pode ser combinada com elementos da cultura industrial, sem perder o aconchego da antiga construção de estuque.

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores, e tem uma grande contribuição a dar a um estado que não oferece moradia para todos, como o Ceará. Um arquiteto amigo meu, Cydno da Silveira, desenvolveu um projeto de casas populares que ensina a pessoa a construir sua própria casa e a cuidar dela, para manter viva uma sabedoria antiga e muito nordestina (o interior das casas de taipa é fresquinho como um ninho de joão-de-barro). Ele fez uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba aqui ao lado, para treinamento de pessoas no projeto, na construção, melhoria e restauração de casas, ou igrejas, ou escolas em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber pode lhe servir também como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.

A casa de taipa é uma alternativa para a habitação no meio rural, nas periferias urbanas, também como casa de praia ou de campo. Para as populações mais pobres é uma forma de independência, uma estratégia secular de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente por mulheres. O sistema elimina a compra de material, o transporte, o crédito, o processo industrial e poluente de construção. A edificação é rápida, tem caráter tanto transitório quanto perene, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Pode ser levada aonde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde os insetos gostam de se aninhar. Integra a família, as mulheres e crianças podem trabalhar na construção, e integra o grupo na comunidade, quando feita em mutirão. Não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma mesma parede. Disse dela Lucio Costa: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna...”

Soube, recentemente, que uma estrada passou de forma violenta pelo Cumbe, quase derrubando a igreja e destruindo o caráter local. As casas de taipa provavelmente serão substituídas por casas de tijolos vermelhos, sem a pureza da tradição regional. Morro de pena... Sempre sonhei ter uma casinha de taipa, com fogão a lenha. Dois coqueiros, um riacho, o mar adiante, jangadas, e uma varanda para fazer renda. É a paisagem que levei comigo, quando fui embora de Fortaleza e era criança.

ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. amliteratura@hotmail.com.

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